segunda-feira, 1 de março de 2010

Nada do que penso existe

Ela morreu na sexta-feira. Enquanto dormia o coração disparou e disse boa noite. Meu tio conta que o médico tinha alertado que o coração dela crescera desmesuradamente e acrescentou que não havia como regredir o tamanho. Para um coração assim grande recomenda a medicina uma vida isenta de sal. Uns dias ela cansava-se da monotonia e salgava o paladar. Eram nove da noite quando a minha tia Maria Luísa faleceu. Meu tio diz entre dentes que ela andava feliz.
Lembro dela sempre na cozinha entre panelas. Parecia uma raposa, mal se aproximava das pessoas. Quando ria colocava apressada a mão na boca, como se rir fosse má educação. Envergonhada pedia desculpas. Maria Luísa deu o primeiro banho da minha filha. Nunca falámos muito. Era uma mulher tão acanhada que as palavras fugiam antes dela abrir a boca.
Entre as panelas e a lide doméstica Maria Luísa existiu. Nunca a vi muito feliz. A não ser agora quando o coração começou a crescer.
Desde há cinco anos que o meu coração também cresce. Acho que por outras razões. Nunca fui uma pessoa que vivesse entre panelas, apesar de gostar de cozinhar. Sempre ri sem vergonha. Ao contrário de minha tia, fui sempre exagerada. Quando chorava, mostrava toda a dor da existência. Quando ria incendiava a vida.
Ontem a minha tia partiu sem me contar a razão do seu sorriso.
Hoje ele me abraçou e meu corpo estremeceu. Nada do que penso existe. Hoje meu corpo contou a verdade.
Enquanto meu coração cresce diminuo o sal. Tempero a vida com outro paladar.
Se o médico achar um perigo um coração assim tão ‘crescido’ ofereço-lhe um sorriso. Digo a ele que não se preocupe. Ando feliz.
Antes de morrer o meu coração abraçará o mundo.

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