quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Entre

Entretanto, Zaratustra olhava a multidão, e assombrava-se. Depois falava assim:
“O homem é corda estendida entre o animal e o Super-homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
[...]
Sucedeu, porém, qualquer coisa que fez emudecer todas as bocas e atraiu todos os olhares.
Entrementes pusera-se a trabalhar o volteador; saíra de uma pequena porta e andava pela maroma presa a duas torres sobre a praça pública e a multidão.
Quando estava justamente na metade do caminho abriu-se outra vez a portinhola, donde saltou o segundo acrobata que parecia um palhaço com as suas mil cores, o qual seguiu rapidamente o primeiro. “Depressa, bailarino! — gritou a sua horrível voz. — “Depressa, mandrião, manhoso, cara deslavada! Olha que te piso os calcanhares!
Que fazes aqui entre estas torres? Na torre devias tu estar metido; obstrues o caminho a outro mais ágil do que tu!” E a cada palavra se aproximava mais, mas, quando se encontrou a um passo, sucedeu essa coisa terrível que fez calar todas as bocas e atraiu todos os Olhares; lançou um grito diabólico e saltou por cima do que lhe interceptava o caminho.
Este, ao ver o rival vitorioso, perdeu a cabeça e a maroma, largou o balancim e precipitou-se no abismo como um remoinho de braços e pernas. A praça pública e a multidão pareciam o mar quando se desencadeia a tormenta. Todos fugiram atropeladamente, em especial do sítio onde deveria cair o corpo.
Zaratustra permaneceu imóvel, e junto dele caiu justamente o corpo, destroçado, mas vivo ainda. Passado um momento o ferido recuperou os sentidos e viu Zaratustra ajoelhado junto de si. “Que fazes aqui? — lhe disse. Já há tempo que eu sabia que o diabo me havia de derrubar. Agora arrasta-me para o inferno. Queres impedi-lo?”
“Amigo — respondeu Zaratustra — palavra de honra que tudo isso de que falas não existe, não há diabo nem inferno. A tua alma ainda há de morrer mais depressa do que o teu corpo; nada temas”.
O homem olhou receioso. “Se dizes a verdade — respondeu — nada perco ao perder a vida. Não passo de uma besta que foi ensinada a dançar a poder de pancadas e de fome”.
“Não — disse Zaratustra — fizeste do perigo o teu ofício, coisa que não é para desprezar.
Agora por causa do teu ofício sucumbes e atendendo a isso vou enterrar-te por minha própria mão”.
O moribundo já não respondeu, mas moveu a mão como se procurasse a de Zaratustra para lhe agradecer.

1 comentário:

Paulo Borges disse...

O que há "entre" o Eterno Retorno e o Super-Homem?